Álbum de Retratos

Invento-vos como sois (Bergson), mas o essencial de vós escapa aos enquadramentos.


(Imagem : Adama)


Meninas Crescidas #4


ESTELA



Com quase 60 anos, havia nela uma jovem em fila de

espera. Impaciente, soltou um riso que precipitou a eclosão

das borboletas.

Meninas Crescidas #3

ANA MORAVIA


Há um momento em que não nos reconhecemos. Em nós mesmas tornarmo-nos estrangeiras. Como se nos tivessem cravado um brinco à nascença. Até morrer permanecemos com ele. Ao redor da orelha toda a figura se desfigura. Restam - nos vestígios ( falarei apenas à superficie?). Antes de uma nova fase – limpa , assumida - ficamos entaladas entre portas ( passado / presente ). Perdemos todo um horizonte de expectativas.

Chamavam-na Anica e sempre a sentaram nas primeiras filas. Dava ares de princesa, sem grande ostentação, desenhada a traços finos. Composta. De uma irreverencia a sair pelas bainhas .Com as ânsias e frustrações de toda a gente​​, quando olhava para trás parecia ver uma aflição maior do que a dela. A miséria do mundo arranhava-lhe a pele sensível mas à hora das refeições arrumava as lágrimas e sentava-se à mesa com a maturidade que lhe era característica. Anica não teve irmãos nem uma grande família. No seu mundo passavam pessoas mais velhas. Enchiam-na de gracinhas e afagos. Circundada por espaços vazios, aprendera a imaginação de ​brincar sozinha. No bosque saltava de clareira para clareira, fugia das horas em que o sol abrasava. Depois havia as mãos. São o que são ​e muito mais: pássaros alados, ondas, podendo mesmo tomar um jeito viscoso de réptil. Quando as libertava, assistia ao nascimento da magia. Quando a luz insidia na superfície das paredes caiadas​ de branco e o sol se aproximava do mar​, originando marcadas sombras​, fazia com elas​  figuras. Não sei ao certo se foi ao brincar ou por um qualquer registo que trazia dentro de si mesma, que percebera os segredos do breu e toda a dinâmica dos opostos que moviam o mundo​. Com o tempo descubrira ​que se mergulhasse fundo no escuro, com coragem e de olhos bem​ abertos, acendia-se uma paisagem clarissíma. Da noite fez uma aliada: intimidade, segredo, brilho de estrelas. Por isso se vestia de preto deixando escapar pérolas e realçando os brincos. Quando o cabelo branco começou a ganhar terreno, pintou-o de preto​ emoldurando com uma franja devidamente traçada o rosto alvo e esguio. Até que houve um dia que a luz crua da realidade deixou de se submeter no escuro dos tecidos e o jogo de ocultamento e transparências termina. Os vestidos deixaram de servir. No mundo masculino tornara-se, apesar do aumento de volume, mais invisível. De Anica passou a Dª Ana e o seu reflexo era, para ela mesma, uma violência. Foi nessa altura que se arrumou a um canto como uma marioneta de fios emaranhos,​  fora ​de cena. A noite deixou de ter estrelas, os brincos tornaram-se foscos. As pessoas mais velhas morriam. Escureceu tanto que no limite acabou por renascer, de surpresa,​com um fulgurante cabelo branco assumido, uma versão de loira amadurecida. Ao sair daquele canto, abriu, ao acaso uma pagina de um livro : “ Aprendi com as primaveras a deixar-me cortar e a voltar sempre inteira” Cecília Meireles). E foi a partir deste dia que Ana Moravia renasceu. Passou a vestir​ roupas largas e mais coloridas​ que deixavam circular o vento e flutuar as linhas do corpo; o sorriso tornara-se despretensioso e livre , voltou a dar lustro aos brincos e a mover-se por entre ​entre a luz e a escuridão , agora com mais descrição e pericia, dando a maior importancia à entre linha. Quando a morte ameaçou a segunda vida, entregou-se como flor a flutuar num rio;elevou-se no céu uma revoada de pássaros e “apenas deixou de ser vista”.

- Verónica Louise

O HOMEM QUE LIA LIVRO(S) NUM CAFÉ

Abrando o passo sempre que passo por ele. Num destes dias, deliciava-me com a as minhas botas novas. Voava com elas. Reinventei a sua figura a montanha e vela. As montanhas movem-se em secreto, a chama das velas sobrevivem na proporção da cera que consomem. Assim era ele. Dei voltas e revoltas aos mundos. Quando voltei a passar naquele local, ele permanecia. Um pouco mais cálido, com o rosto a escorrer para disforme do tempo. A atenção mantinha-se, sem desvios, naquele que parecia ser o mesmo livro: volumoso, com quilómetros de manuseio. 

Eu sei que havia algo de superficial naquela espécie de alegria pelas botas novas assim como nas minhas andanças por aqueles sítios cheio de barulho de luzes e de gente.

Marcelo 

Virou as costa ao passado breve: despiu a T-shirt, os calções, enfiou os chinelos. Decidiu não ir ao ginásio aquela hora. Retirou uma garrafa de água fresca do frigorífico e bebeu a frescura. Estendeu-se a todo o comprido na cama larga. Deixou o vento deslizar-lhe na pele. A luz enternecia. Dizia-o o assobio dos pássaros acima do burburinho da cidade que se descalçava de afazeres quotidianos. Estavam prestes a reacenderem-se as três estrelas que se viam da janela,tão frequentes nas noites de Verão. A aragem ia ganhando recorte na medida do silêncio que se impunha. Apreciava isto de uma forma quase excessiva. Nem mesmo sabia verbalizar um privilégio tão intimo. Se tivesse filhos, aquela hora, andaria, provavelmente, a correr com eles atrás de uma bola ou em cuidados, ao ponto de perder a agudeza para estes pormenores. Neste espaço de si, volta a desenhar Sara. Nos três dias que esteve com ela parecia perfeita nas coisas que um homem quer. Não entendia a atração que sentiu por ela. Aquilo era coisa de pele. Um encaixe espontâneo, uma vontade vigorosa. Quando a viu pela primeira vez foi como se a estivesse, por fim, a rever. Quando achava que a tinha, ela escapou-se-lhe como peixe viscoso por entre as mãos, sem deixar rasto, sem mais. Ainda havia nele um hálito daquela mulher. Só se revivem assim as histórias inacabadas. Sara entrou nele de uma forma suave como sol de inverno, deslizou como água, dava ares de vulnerabilidade e escondia um vulcão. Voltará a encontrá-la? Antes dela, Gina. Linda, com lábios de causar sensação. Mais óbvia em tudo, afirmativa,com uma vontade incansável de se dar, mas ao fim de seis meses de namoro precisou libertar-se dela como alguém que se despe de um espartilho apertado. Não soube arranjar uma justificação para aquela que tudo precisava entender. Ainda não desistira de o reconquistar. E de entender. 

“Podíamos ser amigos”, dizia ele, nu, ao ouvido de Sara, naquela cama, há uns dias atrás: “ amigos de sexo”. Ela mostrou um sorriso ambíguo e voltou a beijá-lo. Hoje acreditava que mesmo sem sexo, poderiam ser amigos pelo seu jeito de ser e pelo que dizia. Talvez por que no espaço em que ela não é percetível, acreditava, “ingenuamente”, numa certa perfeição. Não é a mulher que se ama, é um certo efeito de luz e de cor;o perfume, a flor. O mistério misturado com gestos concretos e desimpedidos, fazem o fermento da vida...
FRANK



1.



«Para que serve uma mulher apaixonada? Melhores são as difíceis : dão há vida horizonte, estimulo. Agora uma mulher apaixonada, caída aos nossos pés, é um grilhão ( sms's o tempo todo, preocupações com o nosso bem estar, amuos quando não lhe prestamos aquela atenção que só existe nos sonhos delas ;lágrimas, perguntas (demasiadas). Um destes dias meto-me no avião e digo os bons dias noutro continente. O mel enjoa em demasia. Não vou deixar que me toldem os movimentos numa doçura que me entorpece. Quero uma mulher que me use. E depois me esqueça. Ou esbarrar com ela, imprevistamente, ao virar da esquina. Estou farto de cenas chatas: coisas de gajas carentes. A minha amante invisível é (sempre foi) a Liberdade, essa coisa imensa. Afinal, um sonho tão distante como os romances de príncipes perfeitos de todas elas.»
 Meninas Crescidas #2

JUDITE



Chamava-se Judite e tinha no cabelo um vigor apreciável. Usava-o por cima do pescoço com caracóis largos, esvoaçantes. Ainda assim, a figura era sumida. Quando deparávamos de caras com o seu rosto, uma paisagem começava a morrer. Voltando a atenção para os olhos, reacendia-se a primavera. Deixava as amigas nos aposentos da idade ditada pelo preconceito, calçava os sapatos de salto alto cor de vinho, vintage, e saia saia. Gostava de ir para aquele café de superfícies planas a refletirem os fenómenos onde a luz das estações do ano entrava pelas vitrines. Bebia cafés longos e espumosos em chávenas transparentes, às vezes comia torradas ou tartes de framboesa. Por ali desfilava gente jovem com uma excentricidade contida ou um equilíbrio clássico assumido. Mas o que mais a deliciava – sim, aquela abertura de lábios era de regozijo – eram os modos aveludados de Ricardo a pontuar as frases com “meu bem”, “minha querida” enquanto adivinhava o que lhe iria servir naquele dia. Depois lançava-se no sofá da sua casa deixando a alma flutuar em musicas brasileiras cheias de sentimento. Um dia cruzou-se com o rapaz a atravessar a passadeira. O coração foi bruscamente impelido a saltar para dentro dos olhos dele mas esbarrou violentamente perante um cumprimento distante, seco. Ricardo estava fora da hora de expediente. Levava uns jeans com rasgões francos no meio da perna (lá isso é verdade, não parecia o mesmo). Nesse dia Judite resolveu ir visitar uma amiga de longa data e calçou os chinelos de enfiar o dedo. De cabelo bambaleante e a trocar as voltas nos contrastes de si mesma, seguiu ligeira.

ALFA, O RAPAZ QUE A PEDALAR FAZ INVEJA AOS PÁSSAROs


Chama-se Pedro Miguel e é um gajo normal. Nem rastas, nem piercings, nenhuma tatuagem, sweatshirt e calças de ganga, uma namorada de cabelo farto, mas sem destaque de maior, a sua cadela é gira, mas rafeira e a vida vai andando assim-assim. Veio de um meio de gente direita, de uma nobreza toda interioridade, sem ostentações. Cresceu rodeado de pessoas moderadas e sempre ouviu a mãe dizer que devia aprender a alegrar-se com o que tinha – que era muito, a comparar com tantos meninos a quem falta o abrigo e o pão. Este mote tornou-se na vida do rapaz uma espécie de mealheiro de louça onde foi depositando energia para superar limites e ir mais além. Mealheiro esse que não hesitou em quebrar, logo que pôde, com total convicção. Agora Pedro tem uma profissão “normal” com um horário fixo, férias e feriados graças à qual pode comprar as bicicletas mais sofisticadas, o equipamento topo de gama cuja marca nele ganha verdadeira raça e reluz. Tanto assim que é conhecido por Asinhas, mas o seu nome secreto é Alfa, o rapaz que a pedalar faz inveja aos pássaros, percorre como uma flecha os trilhos difíceis e íngremes da serra, ainda os amigos estão no início de uma subida já ele tocou com um dedo o Sol e não resiste a recorrer a saltos temíveis quando um arrepio de temor e fascínio o invade da cabeça aos pés. Há tempos a namorada – com um desassossego crescente nos olhos – começou a reclamar atenção. Com um sorriso prestes a desfazer-se, Alfa pensou quanto seria maravilhoso se ela estivesse com ele, mas cedo aprendeu que obstáculos e caminhos tortuosos são só alavanca e trampolim.

O Homem Lento

Carregava o fardo pesado do tempo. Lentamente, muito lentamente. Após uns poucos passos, estava de braços cruzados apoiados no parapeito do piso superior de Centro Comercial. Lá em baixo agitava-se a vida. Só via coxos e velhos. Foi isso que ele me disse quando eu  — triste de não o puder ajudar a transportar tanto peso  — lhe dei uma palmada no ombro e o abordei de frente.

( Baixinho, houve lágrimas. Muito baixinho)

O Homem Invisível

Mesmo nos domingos varria as folhas da calçada como quem vive sem pressa. Para as recolher, bastava um arranhão ligeiro no solo com o ancinho. Prosseguia naquele modo pelo passeio acima. Levava um macacão verde colado à pele escura. Talvez por não assinar os gestos e ter aprendido a pousar leve com as folhas que não deixam traço nem rasto, ninguém dele se apercebia.